Portugal: Reformar as leis do trabalho. Porquê e para quê?

Ricardo Paes Mamede -

Portugal precisa de regras que protejam a dignidade de quem trabalha e que puxem o nosso tecido produtivo para actividades de maior valor: menos rotatividade, mais qualificação, mais contratos estáveis, melhor negociação colectiva. É isso que atrai investimento que fica, com trabalho digno e salários justos. É por isso que o ataque do governo aos direitos dos trabalhadores exige a nossa acção

 Quem ouve o governo falar sobre as alterações à lei laboral que estão agora em cima da mesa fica com a impressão de que a legislação do trabalho está paralisada há décadas. Mas sabemos que não é assim – pelo contrário.

 As leis laborais em Portugal mudaram várias vezes desde o início do século - e mudaram de forma substancial. Não estamos perante um sistema imutável que, de repente, precisaria de ser “modernizado”. Nas últimas duas décadas houve uma sucessão de “reformas” que, no seu todo, alargaram a margem de manobra das empresas, reduziram custos e obstáculos ao despedimento, facilitaram a contratação a termo e fragilizaram a negociação colectiva. O resultado foi uma maior flexibilidade para as entidades empregadoras e uma menor protecção para quem vive do seu trabalho. É nesta linha de evolução que devemos situar o ante-projecto que o Governo traz agora à discussão. 

1) O que já mudou e o que ficou por mudar

 Em 2003, no governo de Durão Barroso, a reforma do Código do Trabalho foi um ponto de viragem: flexibilizou a mobilidade funcional e geográfica mesmo sem o consentimento do trabalhador, abriu a porta a horários mais irregulares, introduziu a “caducidade” de convenções colectivas (acordos  estabelecidos entre representantes dos trabalhadores e dos empregadores) e esvaziou a lei de várias cláusulas protectoras. Ao mesmo tempo, caiu o princípio do tratamento mais favorável em diversos domínios (que garantia que um trabalhador nunca seria prejudicado na presença de regras distintas) e o prazo máximo de contratos a termo subiu de três para seis anos — um golpe sobretudo para os mais jovens, que viram assim prolongada a condição de trabalhadores precários.

 Em 2011–2012, durante o governo de Passos Coelho, aprofundou-se a erosão: as indemnizações por despedimento foram substancialmente reduzidas; a negociação colectiva perdeu força, primeiro porque empresas “em dificuldades” puderam deixar de aplicar acordos, segundo porque a extensão das convenções colectivas de trabalho (que promove a igualdade de condições de trabalho em cada sector) ficou mais limitada — com impacto particular em sectores dominados por micro e pequenas empresas.

 Após 2015, durante os governos de António Costa, houve correcções pontuais. Em 2019 diminuiu-se a duração máxima dos contratos a termo para dois anos, e em 2023 a Agenda do Trabalho Digno atacou sobretudo formas atípicas de emprego. Mas o quadro estrutural manteve-se: caducidade das convenções, dualização entre trabalhadores permanentes e precários, e incentivos que ainda empurram demasiada gente para vínculos instáveis.

 Este breve roteiro é importante por duas razões. Primeiro, mostra que não partimos de um sistema “rígido”, mas de um mercado de trabalho que já foi tornado muito flexível em várias frentes. Segundo, ajuda a perceber o sentido de marcha do novo pacote: longe de ser um ajuste neutro, vem consolidar e estender tendências que conhecemos desde 2003.

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2) As principais alterações agora propostas

 Entre a mais de uma centena de alterações à lei laboral, o anteprojecto do governo inclui as seguintes.

  1. a) Despedimentos e reintegração

 O anteprojecto revê procedimentos e compensações, redefine a indemnização por despedimento ilícito e, sobretudo, amplia a possibilidade de substituir a reintegração por indemnização a pedido do empregador. Na prática, generaliza-se a regra de que a empresa pode opor-se à reintegração mesmo quando um tribunal reconhece que o despedimento foi ilícito.

  1. b) Contratos a termo, trabalho temporário e outsourcing

 Alargam-se as condições de admissibilidade e a duração dos contratos a termo (de dois para três anos) e alteram-se regras do trabalho temporário. Ao mesmo tempo, eliminam-se limites ao recurso à subcontratação, inclusive após despedimentos, revogando a proibição que existia. Ou seja, aumenta-se a latitude para vínculos instáveis, externalização e cadeias de subcontratação.

  1. c) Organização do tempo de trabalho

 O ante-projecto reforça o banco de horas individual: o período de trabalho pode aumentar até duas horas por dia e 50 por semana, com um limite anual de 150 horas. Acresce a possibilidade de “comprar” dias de férias adicionais sem remuneração — convertendo um direito em descanso não pago. Dizem-nos que o recurso a estes mecanismos só será possível com o acordo de cada trabalhador. Mas sabemos bem a pressão a que os trabalhadores estão sujeitos, ainda mais quando lidam de um para um com os empregadores.

  1. d) Plataformas digitais e dependência económica

 Há uma intenção de reforço da “presunção de laboralidade” (ou seja, o reconhecimento da existência de facto de uma relação de trabalho subordinado) para trabalhadores das plataformas digitais (Uber, Glovo, etc.) quando os rendimentos que obtêm de uma mesma empresa é igual ou superior a 80% dos seus rendimentos totais. Esta alteração é apresentada como um avanço. Acontece que a fasquia dos 80% deixa de fora milhares de trabalhadores que, apesar de trabalharem em condições típicas de subordinação, não atingem esse nível de dependência económica. Isto permite às plataformas organizarem-se para fragmentar a relação laboral, distribuindo tarefas por diferentes empresas subcontratadas ou multiplicando “contratos de prestação de serviços”, de forma a que nenhum trabalhador chegue ao limiar previsto.

  1. e) Direito à greve

 Simplifica-se e torna-se mais vinculativo o regime de serviços, com efeitos imediatos das decisões e menos fases de arbitragem. O efeito líquido provável é um reforço da posição do empregador na gestão do tempo de trabalho e na contenção de conflitos colectivos.

  1. f) Negociação colectiva e caducidade

 Propõe-se limitar a sobrevigência das convenções a 12 meses após a denúncia, com uma única prorrogação adicional de até 12 meses por acordo. Findo o prazo, a convenção caduca e perde os seus efeitos. Numa economia com baixas taxas de sindicalização e grande peso de micro e pequenas empresas, este desenho tende a enfraquecer a capacidade negocial dos trabalhadores, a pressionar salários e a reduzir a cobertura de direitos convencionais.

 Em suma: facilitar despedimentos; alargar vínculos temporários e outsourcing; estender o banco de horas individual e dias de férias sem remuneração; apertar a caducidade da contratação colectiva; densificar instrumentos de direcção/controlo e de serviços mínimos. Trata-se de um pacote vasto e transversal, com impactos cumulativos na vida de quem trabalha.

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 Dizem-nos que estas alterações são essenciais para tornar a economia mais competitiva. Mas, na verdade, a reforma que o governo está a querer impor é:

  • Injustificada
  • Injusta e
  • Indesejável 

3) É injustificada porque não resolve nenhum problema realmente existente

 O argumento repetido é sempre o mesmo: leis laborais rígidas [é o que lhes chamam, em vez de mercados de trabalho regulados] prejudicam a competitividade e o crescimento económico. Mas os dados disponíveis e a investigação académica não sustentam esta tese.

 Primeiro, os inquéritos com executivos e investidores não colocam a legislação laboral entre os grandes entraves à competitividade em Portugal. Num relatório recente de uma conhecida consultora internacional, baseada em inquéritos aos investidores estrangeiros a actuar no país, concluía-se que “a facilidade de contratação e despedimento” era, na verdade, apontada como “vantagem comparada” de Portugal, sugerindo agilidade e adaptabilidade. Isto não bate certo com a narrativa de um mercado de trabalho “ingovernável” pela via legal.

 Segundo, a generalidade da investigação académica é clara: reduzir a protecção do emprego não cria, em média, mais postos de trabalho, nem reduz o desemprego [ver lista de referências no final deste post]. O desemprego move-se com os ciclos económicos, com choques de procura e com políticas fiscal e monetária — não com alterações às barreiras legais ao despedimento.

Terceiro, o indicador da OCDE tantas vezes invocado para demonstrar rigidez do mercado de trabalho em Portugal — "Requisitos processuais para despedimentos individuais de trabalhadores efetivos" — é um instrumento enganador. Desde logo, o despedimento individual representa apenas uma parte das regras do mercado de trabalho – e no que toca a várias outras dimensões, incluindo o despedimento colectivo, as regras em vigor em Portugal não se afastam da generalidade dos países da UE. Além disso, aquele indicador olha sobretudo para prazos de aviso e indemnizações, ignorando a complexidade processual que, nalguns países, é justamente o que torna certos despedimentos mais onerosos. A comparação Portugal–Nova Zelândia ilustra isto: Portugal aparece classificado como tendo um mercado de trabalho “muito protegido” e a Nova Zelândia com “pouco”; mas estudos de caso mostram despedimentos neozelandeses altamente onerosos devido a requisitos processuais invisíveis para o índice.

 Em resumo, o Governo propõe resolver um problema mal diagnosticado; não há evidência de que a legislação portuguesa seja um travão central à competitividade, nem de que desregulá-la mais gere emprego. Alterações assim são, por isso, injustificadas.

Além de injustificadas são injustas. 

4) São injustas, porque desequilibram ainda mais uma relação desigual

 O contrato de trabalho não é um acordo entre partes de igual poder. O trabalhador depende do salário para viver; a empresa detém o capital, a organização e a decisão. A lei laboral existe para equilibrar esta assimetria — para garantir dignidade, segurança e previsibilidade a quem vende a sua força de trabalho. É por isso que a tradição do direito do trabalho se distingue de uma visão puramente comercial das relações laborais.

 Quando se permite a uma empresa opor-se à reintegração mesmo em despedimentos reconhecidos como ilícitos, está-se a fragilizar a segurança no emprego e a transformar uma garantia constitucional num custo contabilizável.

 Quando se alarga o banco de horas individual e se aceitam férias “compradas” sem remuneração, está-se a transferir risco e custo de flexibilidade para o trabalhador e sua família.

Quando se flexibiliza o outsourcing e se abrem portas a sucessivos vínculos instáveis, constrói-se uma economia de trabalhadores permanentemente “em trânsito”, com pouca voz e pouca previsibilidade.

 Nenhuma destas medidas é neutra: todas deslocam a balança para o lado de quem já tem mais poder.

 O risco social é claro: mais precariedade, mais insegurança, mais dificuldade em planear uma casa, ter filhos, continuar a estudar. E, como mostraram reformas anteriores, este risco não é abstracto — cai com particular força sobre os mais jovens e sobre quem tem menor poder negocial.

 As medidas propostas pelo governo são por isso injustas.

 Mas para além de injustificadas e injustas, são também indesejáveis.

5) São indesejáveis para o modelo de desenvolvimento de que Portugal precisa

 Estas propostas são más para a produtividade, para a inovação e para o futuro do país.

  1. a) Produtividade e inovação

 Quando despedir é fácil e barato, muitas empresas preferem estratégias baseadas em trabalho descartável em vez de investir em tecnologia, organização e qualificação.

 Além disso, a elevada rotação e a fragilidade dos vínculos desincentivam a acumulação de conhecimento específico e a aprendizagem contínua nas equipas.

 No conjunto da economia, isto empurra a estrutura produtiva para actividades de baixo valor acrescentado.

  1. b) Procura interna e crescimento

 Empregos precários e mal pagos reduzem o consumo das famílias e a estabilidade da procura. Menos procura significa menos investimento e menos crescimento, sobretudo numa economia como a nossa, muito dependente do mercado interno. Ou seja, a “flexibilidade” não se traduz em dinamismo agregado — pelo contrário, trava-o.

  1. c) Finanças públicas, Estado social e combate às crises

 Vínculos precários e intermitentes resultam em contribuições mais baixas e irregulares para a Segurança Social e em menor receita fiscal. A sustentabilidade das pensões e dos serviços públicos ressentir-se-á de uma economia construída sobre contratos frágeis.

 A maior facilidade de despedimentos, ainda mais na ausência de uma protecção sólida contra o desemprego, tem um problema acrescido: aprofunda as recessões, ao acelerar a contração do emprego e da procura interna.

  1. d) Coesão social e demografia

 Mercados de trabalho muito flexíveis aumentam desigualdades, alimentam clivagens entre trabalhadores e corroem expectativas de mobilidade social, com impactos intergeracionais.

 A insegurança reduz natalidade e alimenta descontentamento político. Isto não é um detalhe: sociedades com base laboral instável tendem a ser mais vulneráveis a choques e a radicalizações.

 Em suma, ao fragilizar os trabalhadores, fragiliza-se a economia e a democracia.

 7) É isto que nos dizem inúmeros estudos científicos [ver lista de referência no final]:

  • Reduzir protecção no emprego não se traduz, em média, em mais emprego ou menos desemprego. O que conta são os ciclos económicos e as políticas monetárias e orçamentais.
  • Rotatividade elevada e vínculos frágeis desincentivam investimento em formação e tecnologia; encurrala-se o tecido produtivo em actividades de baixo valor acrescentado.
  • A liberalização reforça clivagens entre “protegidos” e “descartáveis”, ampliando desigualdades salariais e insegurança económica.
  • Precariedade persistente reduz procura interna e contribuições, aumenta a volatilidade nas crises e corrói bases fiscais e contributivas.

 8) Conclusão

 Persistir em mexer sempre do mesmo lado é, por isso, injustificado do ponto de vista da competitividade, injusto do ponto de vista social e indesejável para o nosso modelo de desenvolvimento.

 Não se trata de “modernizar” — trata-se de insistir num padrão que sinaliza ao investimento que Portugal está disponível para competir pelo lado do custo do trabalho, não pelo lado da qualificação, da organização e da inovação.

 A competitividade da economia portuguesa não pode traduzir-se em imprevisibilidade para quem trabalha, nem em poder unilateral para quem emprega.

 Ao aprovar estas medidas, não estaríamos a resolver um problema de competitividade — porque ele não está nas leis laborais. Estaríamos, sim, a cristalizar um modelo de desenvolvimento assente em trabalho descartável, menor investimento em inovação e maior desigualdade. O preço pagar-se-á em produtividade, em coesão social e, a prazo, em democracia.

 Portugal precisa de regras que protejam a dignidade de quem trabalha e que puxem o nosso tecido produtivo para actividades de maior valor: menos rotatividade, mais qualificação, mais contratos estáveis, melhor negociação colectiva. É isso que atrai investimento que fica, com trabalho digno e salários justos.

 É isso que faz um país moderno — não a facilidade de se desfazer de quem trabalha, mas a capacidade de fazer melhor com quem trabalha.

 É por isso que o ataque do governo aos direitos dos trabalhadores exige a nossa acção: através do debate e da proposta, e também do protesto e de todas as formas de luta.

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[Artigo tirado do sitio web portugués Ladrões de bicicletas, do 14 de setembro de 2025]

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