Estratégias e ilusões do capitalismo industrial

Daniel Vaz de Carvalho -

A alternativa não é entre capitalismo industrial e capitalismo financeiro. É entre capitalismo e socialismo, ou melhor, transição para o socialismo. O socialismo representa a superioridade de um poder alicerçado numa base social alargada em relação a um poder submetido a uma minoria de oligarcas – disfarçados de “mercados”

1 – A situação

 O neoliberalismo acabou, a globalização neoliberal acabou. O toque de finados foi dado por Trump, o sistema padecia duma doença incurável, o ambiente criado pelos BRICS e outros tornavam a sua existência insustentável. O facto da UE e os media o ignorarem não altera a realidade.

 Autores marxistas e não marxistas, mas próximos pelo pensamento, mostraram, tanto teoricamente como pelas evidências, o falhanço do neoliberalismo: crises, desigualdades, aumento da exploração. Como desde logo foi alertado o neoliberalismo representava uma regressão civilizacional - o ascenso das extremas-direitas é uma consequência direta.

 Com o eufemismo de "democracia liberal" da direita à social-democracia, incluindo partidos ditos socialistas, trabalhistas, "livres", etc, todos alinharam no esquema tentando quando muito minorar os efeitos nas camadas trabalhadoras. Em Miséria da Filosofia Marx refere-se aos “socialistas filantrópicos”, que também querem “paliar o infortúnio do proletariado”, conservando “as categorias que exprimem as relações burguesas, sem ler o antagonismo que as constitui".

 O país capitalista líder, os EUA, afundou-se em défices comerciais, numa dívida de números da astronomia e em capital fictício que o liberalismo considera "valor". Abandonar a globalização neoliberal, pretender instaurar o capitalismo industrial apresentou-se como uma emergência. O problema é que continua a ser capitalismo com todas as suas contradições. Foram estas contradições que levaram um dito keynesianismo (que não o era, designadamente no comércio externo e endividamento) a ser substituído pelo neoliberalismo nos anos 1980.

 A globalização neoliberal promoveu a desindustrialização e procurou aumentar a taxa de lucro através da exploração de mão-de-obra barata nos países em desenvolvimento, do uso da força e da chantagem do dólar como moeda de reserva internacional. Os países líderes do ocidente, em primeiro lugar os EUA, seriam o polo para o qual convergiria a riqueza gerada globalmente. Esse tempo passou. Os EUA não são mais o maior parceiro comercial da maioria dos países. A China está a ocupar esse lugar.

 O plano globalista forçava as nações a uma centralização financeira total, meras províncias do império com um sistema económico e monetário único referido ao neoliberalismo e ao dólar. Com a aplicação de sanções a dezenas de países o esquema global do neoliberalismo autodestruiu-se. Países saíram desta órbita, criaram sistemas alternativos como os BRICS, OCX, UEEA, em que é considerada a soberania económica, a produção necessária à sua subsistência e desenvolvimento sustentável. Isto manifesta-se no rápido desenvolvimento dos BRICS, com 48,5% da população mundial e 39% do PIB mundial (em PPP), muito à frente da UE, que representa 17,6% do PIB global nominal.

 Perante as crises económicas, financeiras, socais e militares em que os países do ocidente se afundam, o bloco alternativo consolida-se preparando a fusão da OCX com os BRICS num conceito não apenas económico, mas também de Segurança Global, apoiado pela China e pela Rússia.

 Rotas alternativas de transporte comercial às controladas pelo ocidente foram criadas, como o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul, conectando portos russos nos mares Báltico e Ártico a portos no Golfo Pérsico e Oceano Índico ou o corredor de transporte Leste-Oeste. Infraestruturas são construídas, reduzindo custos, facilitando a comercialização.

 Em grande parte isto vem da recusa dos EUA e seus súbditos da UE/NATO, nem sequer terem considerado a proposta russa de segurança coletiva em dezembro de 2021, que poderia ter evitado a inevitável resposta da Rússia ao que se preparava na Ucrânia com vistas à submissão da Rússia e entrada da Ucrânia na NATO.

2 – Sistemas

 Os sistemas são definidos pelas suas leis fundamentais. Os sistemas energéticos são definidos pelas leis da termodinâmica; os sistemas eletromagnéticos pelas leis de Maxwell; a propagação das ondas eletromagnéticas pelas leis de Lorenz-Einstein. O sistema capitalista é definido pela sua lei fundamental:   a maximização do lucro monopolista. A lei fundamental do socialismo é a maximização dos benefícios sociais.

 No capitalismo é a própria concorrência que gera a economia monopolista, constituída pelos oligopólios da indústria, serviços e finança. As contradições que se geram no sistema não podem ser superadas através de proclamação de objetivos e (boas) intenções. Tentativas de ultrapassar as contradições existentes mantendo a sua lei fundamental, têm apenas um resultado transitório acumulando fatores de crise.

 A maximização da taxa de lucro como fundamento económico, significa que este conceito está acima da forma como a riqueza possa ser criada e repartida. Está acima do social que tem que se lhe subordinar em nome do que é definido como "eficiência". Assim, independente das formas políticas adotadas – do fascismo, à democracia oligárquica ou à social-democracia keynesiana – o sistema mantém-se satisfazendo os interesses do capital predominante.

Para integrar os diversos modelos de capitalismo e não querer que se pense muito sobre isso, foi adotada a designação de “economia de mercado”, passando a ser os “mercados”, na realidade quem os domina, a governar a vida das pessoas. Embora se proclamem valores democráticos, estes estão em última análise subordinados aos interesses do capital e à sua necessidade de constante expansão.

 Pela própria natureza da sua lei fundamental, o sistema não tem meios de evitar a ocorrência de crises, minoradas à custa de intervenções estatais massivas a favor do grande capital (socializando prejuízos, privatizando benefícios), sacrifícios para a classe trabalhadora, militarização e guerras.

3 – Sistema neoliberal

 Dada a dificuldade em obter taxas de lucro suficientes nas áreas produtivas e evitar a queda da taxa de lucro geral, o capitalismo industrial de conteúdo keynesiano foi substituído pelo neoliberalismo. O grande capital orientou-se para a esfera financeira, operando uma transferência a seu favor da mais-valia criada nos outros sectores, instaurando o que os clássicos mais criticaram:   o sistema rentista.

 O neoliberalismo é um totalitarismo dogmático e agressivo apresentado como via única para todos os povos sob o comando e vigilância das potências imperialistas. Na realidade é um evidente fracasso. Os mercados simplesmente não funcionam como a teoria pretende e as contradições do capitalismo acabam por surgir de forma exacerbada. Os resultados são visíveis e são péssimos: o mundo enfrenta instabilidade, insegurança e crises insolúveis dentro deste sistema, independentemente de ligeiras variações conjunturais.

 A finança com os seus critérios de rendibilidade no curto prazo assumiu o papel de planificador ditando as orientações fundamentais das economias nacionais, no comércio internacional, na fiscalidade, na criação de dívidas. É a oligarquia que domina os "mercados" que determina a nossa forma de viver e com a qual alinham partidos ditos de esquerda.

 A globalização neoliberal e seu "comércio livre" tem servido para controlar o nível de salários internamente, com o argumento de ser competitivo. A liberdade de circulação de capitais associada à concorrência fiscal confronta os trabalhadores com salários e produtividades doutros países e políticas fiscais degradadas em função dos interesses da oligarquia. As políticas nacionais acabam por ser reguladas desta forma que nada tem nem de democracia nem de soberania.

 Com o neoliberalismo, o relativo equilíbrio democrático das forças sociais alterou-se a favor do grande capital. O eufemismo "democracia liberal" tem servido para dar boa consciência aos seus defensores, permitindo que os países que não se lhe submetem, sejam apontados como "iliberais", sinónimo de "totalitarismo" e "ditadura". Aos media é dada a tarefa de difundir a rejeição ou mesmo o ódio, a esses países, em conformidade com as orientações da USAID, NED, etc. Caso da China, Rússia, Irão, RPDC, Cuba, Venezuela.

 Keynes na Teoria geral do Emprego, Juros e Moeda defendia a criação de um imposto para as transações financeiras com o objetivo de não permitir que a especulação predominasse sobre a esfera produtiva. Isto foi apagado e a finança tem o poder de criar dinheiro e gerir o crédito, assumindo a administração do sistema capitalista, organizando-se para extorquir dinheiro ao Estado, à população trabalhadora, às MPME.

 No campo da fiscalidade, os impostos deixaram de ser uma forma de redistribuição do rendimento, prossecução de políticas sociais e de desenvolvimento, adotando-se um insidioso princípio pelo qual “os pobres serão menos pobres se os ricos forem mais ricos”.

 Mas o neoliberalismo não prescinde do Estado, pelo contrário, orienta-o em função dos interesses que estabelece. Os elevados investimentos, os riscos e incertezas associados a investimentos como as tecnologias mais avançadas, levaram a reconhecer que o mercado não pode servir de guia para os orientar, sendo estabelecidos "incentivos" estatais para esses objetivos. As tecnologias mais avançadas têm sido conseguidas a partir da ação governamental direta ou indireta, através de subsídios, encomendas, designadamente no campo militar, legislação e proteções de vária ordem, como a regulamentação sobre patentes.

 Os erros e ilusões vão persistir porque liberais ou social-democratas não entendem, nem querem entender, como o sistema capitalista realmente funciona. A distopia é de tal nível que uns papagaios mediáticos peroravam que o comércio (dito) livre era o garante da paz, quando historicamente foi o contrário, através do colonialismo, neocolonialismo, guerras e golpes de Estado imperialistas.

 Também recusam reconhecer, enfeudados à "democracia liberal", que o recrudescimento de forças neofascistas, neonazis, xenófobas, para além das ditaduras oligárquicas mascaradas de democracia, são um exemplo do resultado a que o capitalismo monopolista sistematicamente conduz.

4 – A quarta revolução industrial

 Convém mencionar outra estratégia, delineada pelo capitalismo, exemplar pela arrogância e inconsciência com que foi estabelecida. Trata-se da "4ª revolução industrial" (4i) muito badalada há uma década. Era uma estratégia imperialista, sendo o desenvolvimento tecnológico posto ao serviço do aumento da exploração, particularmente dos povos do Sul Global. A conceção e comercialização dos produtos centrava-se nos países capitalistas mais avançados tecnologicamente; nos países dependentes política e financeiramente, a produção. Mesmo sem a 4i, a prática atual mostra que embora nestes países seja criado 85 a 95% do valor, apenas que lhes é proporcionado entre 15 a 5% do preço.

 Baseava-se na digitalização dos processos, utilizando a robótica, impressoras 3D, avançadas tecnologias da informação, comunicação e localização. Vias Internet de alta velocidade tornariam possível o controlo em tempo real, ou considerado como tal, de operações localizadas em pontos muito distantes a partir de dados recolhidos por uma vasta gama de sensores e processados centralmente por computadores de alta capacidade dotados de inteligência artificial.

Através das redes informáticas de alta velocidade as operações poderiam ser realizadas em diferentes países “com um mínimo de intervenção humana”. Uma sala de comando, controlo e condução do processo poderia estar a milhares de quilómetros.

 No contexto da “revolução digital” eram requeridos apoios estatais destinados a tornar atrativos os investimentos das grandes transnacionais, visto que apenas a estas são acessíveis os investimentos necessários aos projetos de digitalização da economia, com elevados custos na fase experimental, riscos, incertezas quanto a resultados e competitividade, destruição do capital fixo existente, etc.

 Tudo isto era apresentado como grande vantagem para o “consumidor”, esquecendo que seria apenas para quem pudesse pagar, não deixando de vir com ameaças: “a revolução tecnológica terá um impacto negativo para os que se atrasarem”. Por outras palavras: submetam-se às transnacionais e ao grande capital financeiro - senão…

 Esta estratégia abria às transnacionais a possibilidade de reorganizar e recolocar processos de produção em todo o mundo, sem transferência tecnológica, mesmo admitindo a participação de microempresas (ditas start-up) dedicadas a nichos tecnológicos e à inovação, sendo os resultados depois utilizados pelas transnacionais.

 Esta dita "revolução" perpetuava e agravava os desequilíbrios a nível global, a dependência numa forma de colonialismo tecnológico, acentuava a concentração monopolista devido aos capitais em jogo e ao necessário domínio dos mercados para concretizar e tornar rentável a produção.

 Os seus próceres reconheciam contudo que a maior dificuldade nestes objetivos era o sindicalismo de classe. O ideal seria um Estado sem poder democrático, sem sindicatos, apenas partidos cujo papel se limite a iludir as massas populares – reprimi-las se necessário – e gerir os interesses da oligarquia, servindo-se da austeridade para compensar tudo o que a “desmotivasse”.

 Nesta estratégia o capital fica contudo colocado perante a perspetiva de mais crises. Se o lucro não for utilizado na esfera produtiva é a crise; se for utilizado corresponde a uma maior composição orgânica do capital e daqui à baixa da taxa de lucro e à crise. Se não houver uma transferência de rendimentos (salário direto e indireto) para os trabalhadores acompanhado de planeamento económico ter-se-á redução da procura, desemprego e…crise.

 Como de costume, as perspetivas não deixavam de ser aliciantes. Afirmava-se que em 5 anos (já passaram outros 5...) permitiria na “Europa” 110 mil milhões de euros de “redução de custos” (em benefício de quem?) e um aumento do PIB de 5% (em que países?) criando 16 milhões de empregos altamente qualificados... embora fosse estimado o desaparecimento de 12 milhões menos qualificados.

 Eram as mesmas ilusões que com o euro, os Pactos de Estabilidade e Crescimento, as Diretivas Europeias sobre concursos públicos, etc que iriam permitir “crescimento e emprego”, poupanças de milhares de milhões aos Estados e “contribuintes”. Ilusões que se pagaram com endividamento, desindustrialização, estagnação, desemprego, crise, desigualdades, pobreza.

5 – A ilusão do capitalismo industrial

 O neoliberalismo produziu uma sequência de crises desde o início dos anos 90, culminando na de 2008, da qual não conseguiu recuperar, para além de pequenas variações: a estagnação económica e a tendência para a queda da taxa de lucro mantém-se. Perante este falhanço o capital tenta um retorno ao capitalismo industrial, no que tem a colaboração de uma dita esquerda, alienada numa visão idílica do capitalismo construída através da mistificação dos "anos de ouro do capitalismo" em parte da segunda metade do século XX. Uma visão que fecha os olhos às devastações e tragédias cometidas pelas guerras imperialistas, pelo colonialismo, neocolonialismo e ditaduras para impor ou manter o sistema.

 O capitalismo foi apresentado como tendo permitido a ascensão de classes sociais, produzido mais riqueza, melhoria do nível de vida e direitos. Se foi verdade em alguns países, o facto é que foi obtido – onde foi – não pelo capitalismo, mas contra o capitalismo, pelo proletariado organizado sindical e politicamente.

 O que de positivo e progressista se obteve foi depois posto em causa, em regressões sociais e civilizacionais através do neoliberalismo, da engrenagem imperialista e dos diversos modelos de fascismo. Nos países mais pobres, de capitalismo dependente, o capitalismo estabelece-se na pobreza, com populações lutando arduamente para sobreviver, sujeitas à repressão e a brutais condições de trabalho. Mesmo nos países mais ricos, cresceu a pobreza e a exclusão social. Vemos sociedades disfuncionais, seres humanos inseguros quanto ao futuro, na apatia ou no desespero, na ansiedade e na depressão, competindo a favor de uma minoria de ultraricos.

 Com ou sem anos de ouro, apesar dos avanços científico-técnicos o capitalismo não conseguiu eliminar a pobreza. Nos EUA, existem mais de 40 milhões de pobres, centenas de milhares de sem abrigo. Na UE, 92 milhões de pessoas em pobreza ou exclusão social, 22% da população.

 A fixação no consumismo tem sido um dos principais meios de sedução do capitalismo. Os EUA tornaram-se para muitos, objeto de admiração acrítica, não entendendo que o que os atrai é também um dos maiores defeitos daquele país:   as desigualdades, a pobreza real, o desapossamento e insegurança da generalidade da população dado o seu endividamento e a fraqueza do sindicalismo. O consumismo também não se preocupa com a depredação ambiental que o sistema origina, tudo disfarçado com a "descarbonização".

 Para instaurar um capitalismo industrial seria necessário adotar medidas que levariam a que o Estado assumisse o planeamento, a condução do sistema económico, o essencial do investimento produtivo básico e estratégico, passasse a ser o único emissor de moeda, controlando os circuitos financeiros e o crédito. Porém, sem sair do sistema, o objetivo fundamental será sempre a criação ou reconstituição de elevadas taxas de lucro para o grande capital.

 Esta estratégia implica que a finança fique ao serviço dos interesses do capital industrial, criando um conflito entre oligarquias acerca do sector onde se centralizam os lucros, como se desenrola atualmente nos EUA.

 Uma visão distorcida do que seja o capitalismo industrial é evidente na UE, deixando intocável o poder da finança, despejando dinheiro do Estado (dívida) nas indústrias militares, onde se esperam elevados lucros – monopolistas – como forma de reconstituir o funcionamento "normal" do sistema e um efeito multiplicador. Esquecem que as indústrias bélicas são um sector improdutivo pago à custa das condições de vida dos povos.

 A propaganda mediática alinha de olhos fechados no militarismo e em vez de defender a paz e a cooperação, cede aos interesses imperialistas e monopolistas.

6 – Substituição de importações

 A substituição de importações, é uma estratégia económica aceitável desde que devidamente planeada tendo como objetivos principais a redução de défices da BC, o desenvolvimento de indústrias existentes ou com potencial para serem criadas, através da proteção da concorrência estrangeira e ainda o conceito que "as nações devem produzir seus próprios meios de sobrevivência", designadamente na área alimentar. Opõe-se ao "comércio livre" neoliberal em que a soberania do país fica dominada pelos interesses transnacionais.

 Uma coisa é utilizar o comércio externo para o seu próprio desenvolvimento pensado de maneira estrutural, outra é o comércio externo servir para estabelecer formas de capitalismo dependente e serem transferidos capitais e bens de acordo com os interesses de maximização do lucro. É o caso dos países menos desenvolvidos que exportam matérias primas (minerais, agrícolas) apenas semiprocessadas, caso da indústria extrativa portuguesa.

 Os EUA, com Trump, apresentaram tarifas alfandegárias como estratégia. Claro que as tarifas alfandegárias são um instrumento legítimo e soberano, ilegais são as sanções estabelecidas fora do sistema da ONU, de acordo com a sua Carta. Mas a questão não é sobre tarifas, é sobre monopólios, parasitismo financeiro e imperialismo. O problema, como destaca Michael Hudson[1], um dos maiores economistas atuais (nem um livro seu está traduzido em Portugal, nem um seu texto é mencionado nos grandes media) é a captação de valor pelo sector FIRE (finanças, seguros, imobiliário).

 O âmbito da exploração global pelo ocidente, comandado pelos EUA, reduziu-se drasticamente com a ascensão do mundo multipolar. As tarifas aparecem como um atabalhoado recurso numa economia consumista que tem um défice comercial de 1,27 milhões de milhões de dólares. A base industrial dos Estados Unidos foi desmantelada há décadas, perdeu competitividade, tentando agora superar as suas vulnerabilidades com tarifas, mas sem existir um plano industrial nacional, excetuando talvez nas indústrias militares.

 As tarifas de nada servem se não existirem as correspondentes industrias com capacidade para um rápido aumento da produção. A necessidade de construir ou reconstruir unidades fabris pode levar três a cinco anos e haveria que desde já estivessem a ser elaborados anteprojetos e cadernos de encargos. Mas há outras condições prévias tão importantes como estas: uma estratégia antimonopolista superando o sistema em que o lucro é prioritariamente realizado no sector FIRE, ou seja, colocar a rendibilidade industrial acima da financeira e esta ao serviço da anterior. Mas isto implica que a criação de moeda e crédito seja uma função do Estado decorrente da sua soberania.

 Um regime tarifário universal sobre as importações, neste caso dos EUA, não é uma estratégia económica. Os riscos são evidentes caso a produção não se adapte rapidamente à procura e sejam quebradas as cadeias de aprovisionamentos. A agressividade inconsequente dos EUA e recuos exibem a sua perda de poder e afastam o comércio global dos EUA, com a China e a Rússia prontos para os substituírem, aprofundando os laços com a Ásia, África, América do Sul.

O dilema que a administração Trump tem de encarar – dificilmente o resolverá a bem – é o conflito entre a necessidade de reindustrialização e os interesses da oligarquia financeira, refletindo a crise do império. O dólar está a perder a supremacia, os objetivos de estrategas russos da moeda alternativa, como Sergey Glaziey[2], acabam neste contexto por ser facilitados: nos BRICS, aliás na generalidade do Sul Global, há uma pressão para abandonar o dólar e dar preferência a ativos reais: energia, minerais, bens industriais e sobretudo ouro cuja cotação atingiu níveis históricos de 103 dólares o grama. Por outro lado, quase todas as 10 moedas rastreadas pela Bloomberg fortaleceram-se em relação ao dólar, incluindo o euro.

 Isto é mau? Para a finança sim, para o sistema imperial também, mas a desvalorização em curso permite maior competitividade nas exportações e encarece as importações. Porém, se a produção nacional não acompanhar as necessidades do país será o desastre no défice da BC, na inflação, nas cotações bolsistas. Isto além da falta de materiais estratégicos para a produção de equipamentos com tecnologias avançadas, por ex. terras raras.

 A reindustrialização de um país, requer planeamento estratégico de longo prazo que nenhum império em declínio pode executar. Realocar indústrias é uma tarefa complexa que requer investimentos massivos de capital público e privado, formação de mão-de-obra, infraestruturas, reestruturação das cadeias de fornecimentos.

 Claro que o sistema financeiro dos EUA sentindo-se prejudicado tudo fará para que o plano de Trump não funcione: manifestações contra as suas políticas têm sido organizadas por líderes democratas. Compreende-se, grande parte do que é obtido como receita pelas grandes empresas dos EUA, em particular as tecnológicas, provém do exterior.

 O problema é que o que Trump quer fazer nem sequer se baseia no keynesianismo, recusa o planeamento estatal para os sectores produtivos, continua a propor-se a redução massiva de impostos sobre as grandes fortunas para fomentar o investimento, mantém a “economia de mercado” como capaz de fomentar a industrialização e o equilíbrio económico. No fundo, quer ressuscitar um capitalismo industrial, deixando praticamente intocável o sector FIRE, esperando que este invista na indústria. Então onde fica a maximização do lucro do capitalismo?

7 – A UE à deriva

 Sahra Wagenknecht, líder do partido de esquerda Aliança Sahra Wagenknecht – Razão e Justiça, disse que a Alemanha deveria responder às tarifas dos EUA retomando o fornecimento de gás russo, fortalecendo os laços económicos com os países BRICS e eliminando a dependência digital e energética dos Estados Unidos.

 Tem razão e é justo que o proponha, mas isto leva-nos para a noção de soberania económica, posta de parte na UE, embora seja o fundamento dos demais aspetos que envolvem soberania.

 Segundo um cálculo russo, entre 2022 e 2024, os custos adicionais em importações de energia na UE, atingiram 544 mil milhões de euros, aproveitados pelos EUA, RU, Noruega e países do Médio Oriente. Porém, levando em conta os efeitos económicos mais amplos, as perdas totais da UE aumentaram para 1,3 milhões de milhões de euros, cerca de 2,4% de sua economia, comparando as previsões de crescimento do FMI com os dados reais do Eurostat. Os cidadãos comuns, sofreram um golpe de 1,6 milhões de milhões de euros em rendimento perdido. Von der Leyen, reconheceu o alto custo das políticas da UE no seu discurso no Fórum Económico Mundial em janeiro de 2025, ao dizer que "libertar-se" (!) dos recursos energéticos russos "teve um preço".

 As políticas fracassadas da burocracia europeia eliminaram a soberania económica dos diversos países destruindo a economia no seu conjunto. A total submissão aos Estados Unidos, com os quais agora se mostram incapazes de lidar, e as sanções contra a Rússia, são o exemplo flagrante das consequências da sua demagogia, ignorância e mentiras.

 Embora procurem esconder-se atrás de "ameaça russa", na UE a desorientação é total, as lideranças não mostram ter capacidade para entender o que se passa na realidade nem apresentar soluções realistas. Querem permanecer agarradas aos mitos de um mundo que acabou: façam os EUA o que fizerem, com Trump ou sem Trump, o anterior não volta.

 Apesar das fantasias de grandes potências que Macron ou Starmer queiram encenar, acompanhados pela incompetência que paira na CE, a UE/NATO está atrasada económica e tecnologicamente. Que prioridades se apresentam na UE para o seu futuro? Como garantir competitividade internacional, sem energia abundante e barata? Como resolver os problemas de endividamento e sociais como a pobreza? Não, a prioridade é tentar mostrar aos Estados Unidos que estão errados, embora mantendo a sua submissão e prosseguir um quimérico objetivo belicista contra a ameaça da Rússia ao mudo unipolar imperialista, sem o qual não concebem existir. A "solidariedade europeia" só serve para subordinar os países pequenos aos ditames da CE da sra. Leyen. A militarização só irá piorar a periclitante situação geral de declínio.

 O neoliberalismo, apresentado como a política necessária ao desenvolvimento, colocou a UE e sobretudo a zona euro, em estagnação desde o início do século, agravada com crises cujas causas não só são incapazes de resolver como pretendem intransigentemente manter. Em 2023, o crescimento económico da UE foi de 0,4%, em 2024 a UE cresceu 1%, a zona euro 0,9%.

 O falhanço económico, a degradação social da UE, provam que comércio livre só é vantajoso entre economias com níveis de produtividade idênticos, caso contrário aumenta os desequilíbrios pré existentes. O comércio externo deve ser orientado pelas necessidades de desenvolvimento através do planeamento económico democrático.

 Os efeitos das sanções aplicadas a dezenas de países, as tarifas que agora os EUA pretendem aplicar, evidenciam as vulnerabilidades da UE e as suas frágeis cadeias de fornecimentos. A UE não está preparada para esta situação, o facto de continuar agarrada a critérios unipolares e neoliberais, mostra a falência das suas orientações e a crescente irrelevância geopolítica. O resto do mundo, os próprios Estados Unidos, olham para a UE/NATO como uma península da Euroásia. Apesar disto, mas coerentemente, cedendo às exigências de Trump, a UE concordou em aumentar as importações de GNL dos EUA, segundo a porta-voz da CE, Anna-Kaisa Itkonen...

8 – E a alternativa

 Sahra Wagenknech apontou um aspeto da alternativa que deveria estar a ser considerada nos países da UE, sobre esta possibilidade o silêncio é total. Apesar da propaganda dos neoliberais de diversas cores o descalabro do sistema obriga-os à intensa intervenção do Estado em apoios, subsídios, desenvolvimento tecnológico, financiamento, etc. O objetivo é sempre o mesmo: proporcionar o aumento da taxa de lucro e tornar "atrativos" os investimentos do grande capital. Não conhecem outra coisa, nem querem conhecer, mas nada disto tem a ver com qualquer alternativa minimamente de esquerda.

 Partidos que se designam como socialistas/social-democratas, apresentam lotes de intenções, geralmente frases feitas sem qualquer suporte teórico ou prático. Pretendem simplesmente gerir o capitalismo melhor que os próprios capitalistas, querem ultrapassar as impossibilidades teóricas do neoliberalismo com medidas de ordem técnica. No essencial subordinam-se aos interesses oligárquicos, em que os direitos dos trabalhadores se encontram dependentes dos interesses do capital e o trabalho é visto como uma concessão do “empreendedor” em "criar empregos".

 Pode-se ser de esquerda sem se assumir como marxista. O que não se pode, é pretender ser de esquerda e simultaneamente antimarxista:   sem o marxismo não é possível entender o funcionamento do capitalismo, a dinâmica das suas crises, nem encontrar as soluções corretas. Em última análise, o que define uma posição de esquerda é, a sua relação com o capital, não permitindo que nenhuma camada social possa reverter o interesse geral no seu próprio interesse privado.

 Voltando à questão das leis fundamentais dos sistemas, o socialismo define-se pela maximização dos benefícios sociais, princípio que orientará as suas ações e o planeamento. Claro que em socialismo há que confrontar o curto com o médio e longo prazos e os próprios condicionamentos à existência e manutenção do sistema. Acresce que sendo a democracia um essencial benefício social, está condicionada pela existência de imperialismo, expansionista e belicista.

 O socialismo só se pode considerar concretizado quando a sua lei fundamental estiver plenamente efetiva no funcionamento e gestão da sociedade. A transição e suas diversas fases dependem das condições económicas e sociais iniciais legadas pelo capitalismo, mas também das situações de ingerência e agressão do imperialismo. É o que na física se considera na determinação concreta de um dado sistema introduzindo as condições limite ou fronteira.

 O período de transição pode ser bastante alargado no tempo, caracterizado pela aliança entre as camadas não monopolistas, procurando a sua integração pacifica e paulatinamente no processo de transição, no sentido de instaurar a democracia socialista e implementar a aplicação das suas leis.

 Quaisquer que sejam as variantes do processo de transição, deverá consistir numa alternativa que defenda os interesses nacionais e populares, que lute pela soberania económica, monetária e jurídica do país. Uma alternativa que se afirme contra as crises capitalistas e o espectro do neofascismo do século XXI.

 As regras da UE não são apenas um entrave à soberania e livre escolha dos países, impedem o seu desenvolvimento estrutural, designadamente das indústrias básicas e estratégicas. Seria bom não esquecer as medidas de desmantelamento da produção agrícola (de que fez parte a liquidação da Reforma Agrária fundamental para a soberania alimentar), das pescas, de indústrias estratégicas como a siderurgia, metalurgia, químicas, etc. Tudo isto à conta das "regras europeias" cujo resultado – ou objetivo – foram a financeirização, endividamento, concentração monopolista, desindustrialização.

 Uma alternativa de esquerda terá de lutar contra estes constrangimentos e estabelecer uma estratégia económica traduzida no planeamento, integrando as MPME através de formas de coordenação e cooperação, apoiadas na medida do seu enquadramento no plano económico. Dos seus aspetos centrais saliente-se a autonomia alimentar, desprezada pelo dogma do "comércio livre", em que a vantagem é dada à grande distribuição, que domina e explora pequenos e médios produtores. Quanto ao comércio externo, a soberania económica nada tem que ver com protecionismo, mas sim com o planeamento das trocas internacionais em função do desenvolvimento do país.

 Que o capitalismo é uma regressão civilizacional em relação ao socialismo, não é só provado teoricamente, foi-o pela própria vida onde quer que tal tenha ocorrido, mesmo em países que apenas tinham encetado moderadas formas de transição, como em países da América Latina. O neoliberalismo é por sua vez uma regressão dentro do próprio sistema capitalista. Pretende, tal como o fascismo, anular avanços civilizacionais obtidos pela classe trabalhadora e coloca o poder do Estado totalmente nas mãos das oligarquias.

 A crise atual surge como produto da ascensão de uma classe dominante financeira, parasitária e militarista que prossegue agressivamente uma agenda que está a reduzir os padrões de vida inclusive da classe média, transfere riqueza pública para cofres da oligarquia, apoia a violação de direitos humanos pelas guerras e conspirações do imperialismo, enquanto milhões de trabalhadores emigrantes são segregados, perseguidos, explorados.

 A alternativa não é entre capitalismo industrial e capitalismo financeiro. É entre capitalismo e socialismo, ou melhor, transição para o socialismo. O socialismo representa a superioridade de um poder alicerçado numa base social alargada em relação a um poder submetido a uma minoria de oligarcas – disfarçados de “mercados”. A questão que se colocaria às forças que se pretendem progressistas é (como há mais de um século): “Que fazer”.

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NR:
[1] Algumas obras de Michael Hudson podem ser descarregadas aqui.
[2] O livro mais recente de Glazyev é La última guerra mundial. EEUU comienza y pierde (clique com o botão direito do rato para descarregar).

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[Artigo tirado do sitio web portugués Resistir.info, do 21 de abril de 2025]

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