A virada dos Estados Unidos para a China

Tadeu Valadares -

A virada dos Estados Unidos para a China aumentará mais ainda o perigo de conflito militar no extremo oriente. A península coreana e Taiwan, focos permanentes de alto risco bélico. Isso para não falar nas tantas guerras internas ou internacionais que passam em geral despercebidas, mas que marcam a ferro e fogo o cotidiano de grande parte da África e da Ásia

1.

 Analisar a conjuntura geopolítica exige ir além dela. Pede um prévio refletir sobre o que a sustenta, sobre o fundamento que nos permite alcançar outra visão do momento conjuntural, distinta da limitada ao fluxo incessante dos fatos diários. Fugazes por definição, as conjunturas tendem a nos desnortear.

 Mas, inseridas num contexto maior, dão margem a interpretações que, sem fugir ao imediato, permitem melhor compreendê-lo. Esse contexto que leva em conta as conjunturas, mas concede prioridade à dimensão estrutural e às suas dinâmicas, no essencial constitui para mim o tempo da longa duração.

 Adotada tal perspectiva, então se pode conceber este quarto de século como a etapa mais recente de um estendido processo de gênese, afirmação e incompleta exaustão de algo novo ‘vis-à-vis’ a história anterior. Algo que começou a emergir na Europa dos séculos XII ou XIII. Essa novidade – velha de 800 anos, mas que nos alcança e em boa parte nos determina –, os historiadores que trabalham com a longa duração chamam de capitalismo histórico. A despeito de seus debates internos, em geral concordam em que o perfil do mundo novo se delineou com mais clareza a partir dos séculos XV e XVI.

 Confesso cheguei a pensar em lhes trazer um esboço da dinâmica do capitalismo histórico, a meu ver marcada por quatro grandes etapas: a comercial, a manufatureira, a industrial e a do capitalismo bifronte como seu avatar mais recente. Desisti do projeto, nosso tempo é curto para esse tipo de fala. Optei por me concentrar sobretudo no problemático estágio atual do capitalismo bifronte e na presente conjuntura geopolítica.

 Quando falo de capitalismo bifronte, tenho em mente a coexistência conflitiva de dois perfis de capitalismo.

 De um lado, o produtivo, de algum modo herdeiro da revolução industrial. De outro, a variante surgida no século passado, uma espécie de ‘capitalismo diminuído’.

 Esse capitalismo diminuído é o financeiro e arteiro que vive das artimanhas das finanças, das taxas de juros e de câmbio, das isenções fiscais do estado, das altas e baixas das bolsas, da cotação das ações, dos títulos do tesouro, dos ‘bonds’ e de muito mais que habita a emaranhada floresta das finanças, selva selvagem habitada por touros, ursos e espertalhões.

Trata-se de um capitalismo que tem algo de surreal. Capitalismo que, ademais de seu próprio poder econômico, político, midiático e ideológico, está umbilicalmente unido ao complexo industrial militar.

 Capitalismo, portanto, de outra cepa. Mescla de economia improdutiva, voltada para serviços, não para a produção de mercadorias tangíveis, com seu outro lado, o irremediavelmente bélico, a incessante criação e uso de meios de destruição.

 Desde mais ou menos 50 anos atrás, onde quer que essa variante passou a predominar observou-se a diluição do que restava do estado de bem-estar social prometido por Keynes e Roosevelt. Em simultâneo, os historiadores anotam, no fluir desse meio século, a continuada expansão do estado belicista, o ‘warfare state’, a razão de ser do complexo industrial militar.

 Não esqueçamos de que a teoria econômica keynesiana pretendia harmonizar essas duas dimensões. A crise de esgotamento desse Jano, desse ente com duas faces, em que bem-estar social no plano interno se reforçava pelo recurso à guerra internacional, é visível até hoje. De fato, o que era New Deal foi superado pela financeirização plena. O que era sua arquimediana alavanca – o capitalismo de guerra como instrumento superador da Grande Depressão – tornou-se setor ou departamento relativamente autônomo no âmbito da totalidade que Ernst Mandel chamou capitalismo tardio. A proposta que no limite prometia enfim deixar para trás os ciclos das ameaçadoras crises econômicas converteu-se numa espécie de Ares, o deus grego da guerra.

2.

 Recordemos que 1914 foi o ano em que eclodiu a ‘guerra para acabar com todas as guerras’. Na verdade, a Primeira Grande Guerra e a subsequente crise de vinte anos serviram de prelúdio ao maior e mais destrutivo de todos os conflitos militares. Ironia ou astúcia da história, a primeira guerra mundial instaurou o tempo da oportunidade que, bem aproveitado pelos Estados Unidos, levou a República imperial, trinta anos depois, à condição de potência quase totalmente hegemônica.

 Para mim, a conjuntura geopolítica internacional que tanto nos preocupa pode ser adequadamente compreendida se levamos em conta o inteiro trajeto do capitalismo histórico no breve século XX de Eric Hobsbawn. Mas a partir de 1947, a dinâmica geopolítica maior foi imposta pela Guerra Fria até a queda do Muro e a dissolução da União Soviética.

 Também há que ressaltar: em 1944 (Bretton Woods) e 1945 (São Francisco), uma nova ordem internacional foi montada pelas potências vitoriosas sob a liderança dos Estados Unidos. Ordem vicária à instaurada em 1919, institucionalizada pela Sociedade das Nações. Por outro lado, não esquecer jamais: 1945 é o estarrecedor ano dos bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki pela república imperial, crime e pesadelo cuja sombra nos acompanha até hoje.

 Afirmei que o período da Guerra Fria foi de hegemonia americana incompleta. Esclareço: hegemonia incompleta por conta do poderio da União Soviética, de sua atuação militar decisiva para a derrota do nazifascismo, e da capacidade de atração ideológica do marxismo-leninismo de então.

3.

 Montada a moldura, pintemos o quadro. A ordem de Bretton Woods e São Francisco é arranjo que há meio século lentamente se esvai, a despeito ou até mesmo em função do unilateralismo plenamente exercido por apenas uma década, de 1991 a 2001.

 Será esse desfazimento parcial ou chegará a se completar? A resposta a essa pergunta dificilmente será dada nos próximos anos, mas sim, decerto nas próximas décadas.

 Desde o início do século, a cena geopolítica é marcada por duplo traço: um deles, a continuidade do prolongado declínio relativo americano. De outro, a espetacularidade da ascensão chinesa. Nessa contraposição em última instância bipolar é que os mais poderosos jogam o jogo pesado da transição de hegemonia. O tempo presente e o que se pode entrever até a linha do horizonte apontam para o surgimento de outro ’hegemon’ e de outra ordem internacional. Mas esse apontar é mera indicação. O jogo apenas começou e está sendo jogado em meio a divergências que se agravam e disputas que ameaçam chegar a extremo desastroso. Seu desfecho é totalmente incerto.

 Numa chave algo otimista, espera-se que a passagem de poder de um ‘primus inter pares’ a outro, conquanto marcada por choques de baixa ou mesmo de média intensidade, não deslizará para cenário marcado por grandes conflitos bélicos. Noutra chave de interpretação, a disputa pode degenerar em gigantesca conflagração entre o país hoje militarmente mais poderoso e a República Popular da China, a única grande potência, de fato superpotência, capaz de assumir papel central no interior de outra ordem possível.

 Certamente, o desfecho ideal desse impasse seria uma pacífica e civilizada passagem de poder. Essa saída panglossiana me parece generosa aposta analítica que em si mesma reitera a distância hegeliana entre os votos do coração e o curso real do mundo.

 O arco das possibilidades necessariamente inclui o pior dos cenários porque o ‘hegemon’ e o ‘contra-hegemon’ dispõem de todas as condições em termos nucleares para, numa situação limite entendida como ameaça existencial, optar pela irracional ascensão ao mais extremo dos extremos. Nesse caso, a inteira humanidade ficará em perigo. Noutras palavras, o pesadelo nuclear que nos acompanha desde 1945 pode concretizar-se como desastre no modo absoluto.

 São muitas, portanto, as incertezas.

 Mas em meio a todas elas, o que hoje se pode perceber com razoável clareza? Minha resposta: que a república imperial vive a crise interno-externa mais grave de sua história. Mais grave do que a superada com a Guerra de Secessão. Mais grave do que a exposta pelo colapso econômico de 1929, a Grande Depressão da qual resultou a chamada ‘revolução do New Deal’.

 Essa crise vem-se desdobrando desde as três décadas finais do século passado. Tornou-se fenômeno de tal magnitude que a própria ordem internacional criada em 1944/1945 já não tem funcionalidade para o ‘hegemon’ declinante. O segundo governo Donald Trump é o sinal mais brutal e manifesto de dupla exaustão: a da ordem estabelecida no pós-Segunda Guerra e a de seu principal arquiteto. A velha ordem perece aos poucos, em zigue-zague e com altos e baixos. Donald Trump traduz a desorientação, o alvoroço e a prepotência imperiais diante da esfinge encarnada pelo capitalismo histórico em sua quadra atual.

 Ainda assim, creio impossível que a decadência americana esteja chegando a termo em poucos anos. Por outro lado, cinco meses de iniciado seu segundo mandato, Donald Trump já se tornou a encarnação mais completa de tudo aquilo que há muito corrói o experimento liberal-democrático-oligárquico inaugurado em 1776.

4.

 Quando se compara o revolucionário projeto que tanto fascinou Tocqueville e Marx com a cinzenta realidade imperial do século 21, o que sobressai é o fortalecimento do traço oligárquico. Na outra ponta vemos o lado liberal-democrático do iluminismo americano esmaecer em ritmo acelerado. Dito de outra forma: embora muito abalada, a proposta de organização de sociedade e de estado acordada pelos chamados Pais Fundadores ainda tem seu ‘quantum’ de vigência.

 Cambaleia com o andar trôpego do bêbado, mas se mantém de pé graças aos esforços do equilibrista de turno. Nesse precário equilibrar-se, os mitos fundacionais se mostram debilitados, passando a funcionar de modo inseguro enquanto cimento da sociedade. Tanto assim que os pontos extremos do arco ideológico seguem recorrendo ao mesmo fragilizado referencial básico.

 Mas a rede de valores míticos é submetida a interpretações mais e mais opostas, reciprocamente excludentes. Para mim, esse conjunto de sinais funestos mostra que, independentemente do governo, seja ele republicano ou democrata, o enfraquecimento do império não dá mostras de reversão. O processo provavelmente já alcançou ou está por alcançar o ponto de não retorno.

Em óbvia contraposição à manifesta queda dos Estados Unidos, testemunhamos a extraordinária ascensão da República Popular da China no relativamente curto prazo histórico que vai de Deng Hsiao Ping a Xi Jinping.

 Numa pílula: para mim, liquidado o maoísmo, e a partir do momento em que Deng assume a liderança do país, a China optou por desenvolver uma forma de capitalismo de estado sob comando do partido único, das forças armadas e da alta burocracia, tanto a tradicional quanto a que dirige as megaempresas estatais. Essa variante revelou-se capaz de instaurar e manter notável ritmo de acumulação de capital. E pelo menos até agora evitou a hegemonia interna do grande empresariado chinês e da fração do empresariado ‘transnacional’ instalada na República Popular.

 Mas a tríade chinesa – partido, forças armadas e alta burocracia – foi muito além. No que tem algo de confucionismo, vem reforçando seu extraordinário desempenho econômico ao combiná-lo com estratégias voltadas para coesão nacional, avanço social e ideológica harmonia de todos os interesses ditos nacionais.

 Em meio a tanto êxito, destaco fato a meu ver confirmatório do caráter capitalista de estado do até agora bem-sucedido experimento: também na República Popular o escandaloso já se encontra naturalizado, louvado e valorizado como sadia inspiração. Em 2025 havia 516 bilionários na China. Nos Estados Unidos, 902. Dou por seguro que essa defasagem será apagada em pouco tempo.

 Do acima desenhado podemos concluir que o indisfarçável definhar americano e a rápida escalada chinesa conformam o fenômeno geopolítico central do século. A concorrência, a competição, a animosidade e a inimizade entre as duas superpotências têm tudo para se intensificar, pouco importando quem esteja no Salão Oval da Casa Branca ou, em Beijing, à frente do partido, do estado, das forças armadas e do governo.

 Do manejo dessa contraposição dependem os Estados Unidos, a China e todos nós, mas ninguém pode presumir que as relações sino-americanas serão guiadas por suficiente grau de racionalidade. Ademais, como sabemos, transições de hegemonia pela via pacífica, ocorridas na vigência do capitalismo histórico, na realidade inexistem. Talvez o único e muito imperfeito caso seja o da derrocada da União Soviética. No geral, o ‘hegemon’ de turno tudo faz, inclusive ou sobretudo militarmente, para manter sua posição solar no sistema.

5.

 Pensemos nos tempos do Reino Unido como potência hegemônica, e na Alemanha, no Japão e nos Estados Unidos como fortes competidores. Só com a Segunda Guerra a república imperial chegou à primazia, muito embora confrontada, de 1947 a 1989, pela URSS e o campo socialista burocrático. Confrontada muito mais no plano militar e ideológico do que no econômico e no científico-tecnológico.

 Em contraste, a China é um rival por completo diferente. Em verdade, algo jamais enfrentado pelo império americano. A República Popular já é capaz de fazer frente ao ‘hegemon’ cadente em todos os registros do poder, especialmente o militar, o econômico produtivo, o comercial, o financeiro e o científico-tecnológico. No registro ideológico, nem tanto.

 Levando em conta esse panorama, será historicamente viável uma transição de hegemonia racionalmente negociada? Não há como responder com certeza a esta interrogação, mas a alarmante biografia bélica dos Estados Unidos não gera esperança, em particular se levamos em conta que, além de ser a mais forte potência militar, o império dispõe de rede com mais de 800 bases distribuídas pelo inteiro planeta.

 Tal dispositivo é o que torna única sua capacidade de projetar poder bélico onde bem queira. Ademais, a superpotência imperialista dispõe da servidão voluntária de explícitos vassalos e subordinados aliados nos quatro cantos do mundo. Mas sobretudo deles dispõe onde mais conta: na Europa, no Oriente Médio e na Ásia Oriental, nos dois Mares da China, o oriental e o meridional, no Índico e na Oceania. Isso tem nome: chama-se Ocidente expandido.

 Agravando a cena, desde 2011 os Estados Unidos tentam a ‘virada para a China’. Noutras palavras, querem diminuir substancialmente seus compromissos militares com a Europa da OTAN para se concentrarem no esforço crucial: o de conter e fazer retroceder a China tanto na sua circunvizinhança quanto no chamado resto do mundo. Diante disso, as chances de uma transição pacífica tendem realisticamente a zero. Em contrapartida, os riscos de mortandade generalizada em caso de guerra total entre as principais potências nucleares crescem muito mais do que se dá conta o público em geral. Vivemos entre Cila e Caribdis.

 Sinto muito trazer-lhes moldura e pintura tão inquietantes, mas de fato as perspectivas são sombrias. Sombrias quando consideradas no registro do tempo longo. Sombrias quando a análise imbrica as estruturas e dinâmicas da longa duração com o tempo curto em que flutuam e se sucedem as conjunturas. Mesmo à luz de vela, torna-se evidente que o capitalismo histórico em sua fase atual multiplica crises de vários tipos. Tanto assim que o termo policrise, cunhado por Edgard Morin e Anne Kern quase ao término do século passado, há tempos foi dicionarizado. Aproveito essa noção e resumo a policrise atual.

 Somos sempre surpreendidos por crises econômicas profundas, recorrentes, algumas delas globais. Todas apontando, ao menos tendencialmente, para o que os estudiosos da economia política crítica denominam crise completa, crise definitiva, insuperável no weberiano cubículo de aço em que se tornou o mais dinâmico de todos os modos de produção.

 A crise ambiental, por sua vez, mostra-se cada vez mais intensa. Ao que muitos sinais indicam, pode-se tornar irreversível em poucas décadas. Isso faz com que estudiosos afirmem estarmos na era geológica do antropoceno. Ou, segundo outros ainda mais críticos, na do capitaloceno.

 Noutra vertente, as crises geopolíticas propriamente ditas se manifestam continuamente, ou, quando menos, se mantêm em estado de latência em regiões, áreas ou territórios distintos, entre eles a ‘faixa crítica’ que se estende do Ártico e do Báltico ao Negro, passando por Kaliningrado, Ucrânia, Bielorrússia, Rússia e Moldova. E não nos esqueçamos da sempre tensa região balcânica. Crescem as probabilidades de a guerra ou operação militar especial na Ucrânia vir a abarcar toda a Europa. Basta ler as declarações belicosas quase cotidianas dos dirigentes da OTAN e da União Europeia, do Reino Unido, da França e da Alemanha.

 Basta informarmo-nos sobre o novo armamentismo europeu. Suficiente tomar conhecimento das reações da Federação Russa. O que emerge é uma espécie de miniguerra fria que em princípio, mas só em princípio, ficaria restrita à Europa e à Rússia. A recém-concluída cúpula da OTAN na Haia, forte ilustração a mais dessa tendência estranhamente ocidental de cometer harakiri.

 A virada dos Estados Unidos para a China – aparentemente o objetivo central, no plano externo, do errático governo de Donald Trump – aumentará mais ainda o perigo de conflito militar no extremo oriente. A península coreana e Taiwan, focos permanentes de alto risco bélico. Isso para não falar nas tantas guerras internas ou internacionais que passam em geral despercebidas, mas que marcam a ferro e fogo o cotidiano de grande parte da África e da Ásia.

6.

 Pensemos sobretudo no maior de todos os crimes, o genocídio incessante em Gaza, conjugado à violentíssima mecânica de expulsão da população palestina que vive nos demais territórios ocupados, a Margem Ocidental e Jerusalém oriental. No seu martírio cotidiano, Gaza é a denúncia coberta de sangue da dupla moral que guia o Ocidente expandido. Gaza, hoje a marca maior da selvageria estatal e social de Israel, aparteísta, colonial-sionista, irrecuperável.

 Relembremos também o ocorrido e o que está ocorrendo na Líbia, na Síria, no Iraque, no Líbano, no Afeganistão. Pensemos no recente choque militar, que ameaçou descambar para o nuclear, entre o Paquistão e a Índia. Reflitamos sobre a guerra de agressão israelo-americana ao Irã, ora interrompida por frágil cessar-fogo. Levemos em conta que jamais Israel cumpriu por muito tempo com qualquer acordado cessar-fogo. Se recomeçada, ou quando reiniciada, a expedição bélica contra o Irã está condenada a gerar desastres enormes, imprevisíveis e, portanto, por agora incalculáveis.

 A América Latina de momento, a meu ver, não passa por esse tipo de situação, mas o cenário pode mudar bruscamente se houver intervenções americanas mais pesadas na América Central e Caribe, região em que Cuba, Nicarágua e até mesmo o Panamá são alvos óbvios. Na América do Sul, a Venezuela há muito é a vítima que resiste como pode ao imperialismo estadunidense. Noutro tipo de registro, a fronteira entre os Estados Unidos e o México integra essa fieira de pontos críticos.

 Confesso, por vezes sou tomado pelo sentimento de que somos mais de oito bilhões de atores no teatro do mundo moderno e pós, mundo em que se encena a tragédia cujo primeiro ato, pré-moderno, foi a emergência do capitalismo histórico. Herdeiro desse longo transcorrer, o século XXI nos alerta, no registro do cotidiano, para o fato de que estamos vivendo à beira do abismo. O relógio criado pelo Boletim dos Cientistas Atômicos indica: estamos a 89 segundos da terrível meia-noite que os físicos denominam ‘Dia do Juízo Final’. Desde a criação do relógio, seus ponteiros nunca chegaram tão perto da hora da catástrofe completa.

 Diante de tantos riscos manifestos e de tão poucas perspectivas alentadoras, torna-se indispensável, na contracorrente desses rumos entre regressivos e apocalípticos, fazer o que cada um de nós possa. Diante de nós, em oposição a nós, a barbárie se mostra na multiplicidade que é sua face aparente. Multiplicidade que funciona como véu ou máscara a esconder sua abissal unidade.

 No imediato, e pensando no Brasil, sublinho em negrito o perigo do neofascismo ou do neoautoritarismo ainda sem nome acadêmico preciso. Sua sombra hedionda – não direi mais do que isso – nos alcança a todos, brasileiros e brasileiras. Pesadelo nosso maior, esse. Tanto no curto prazo do ciclo eleitoral quanto, dimensão mais preocupante ainda, no tempo que em muito o ultrapassa.

 Sei que estamos todos, cada qual a seu modo, tentando barrar o tsunami que avança aqui, ali, lá, nesses lugares todos. Mas tenho para mim – esta é uma visão minha, pessoal, provavelmente intransferível – que saída estruturalmente transformadora, fiel ao espírito do poema de Antonio Machado, aquilo de fazer o caminho ao caminhar, demanda, implica e exige, ao menos como esperança sem otimismo, a superação do que emergiu oito séculos atrás: o mundo do capitalismo histórico.

 Pergunto-me se isso é mero anseio meu, e concluo minha fala deixando com vocês essa questão, ela também inserida nos dois tempos históricos: o estritamente conjuntural e o da longa duração.

 

[Artigo tirado do sitio web brasileiro aterraéredonda, do 29 de xuño de 2025]

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