A epopeia palestina – genocídio sem precedentes
Claudio Katz -
A crise gerada pela hecatombe de Gaza tem muitos desfechos possíveis e as saídas projetadas mudam num ritmo vertiginoso. A avaliação dessas conjunturas tende a confundir muitos analistas, que evitam caracterizar o pano de fundo do conflito, que é a natureza do sionismo
O genocídio em Gaza continua após uma breve trégua, com intensos bombardeios que mataram, em poucos dias, cerca de duzentos civis indefesos. Benjamin Netanyahu inventa violações do cessar-fogo por parte do Hamas, sem apresentar qualquer prova dessa desconsideração. Simplesmente persiste com a mesma ação criminosa que iniciou há dois anos. A maior evidência de sua agressão é o novo bloqueio da passagem de Rafah, para impedir a entrada de alimentos a uma população desnutrida.
As tréguas assinadas por Israel são pausas transitórias para relançar novas incursões. Basta lembrar que o país violou 4.500 vezes o cessar-fogo acordado no Líbano há um ano. As atrocidades cometidas durante os últimos dois anos não constituem um triste episódio do passado, mas a antecipação da tragédia que se aproxima, caso os crimes de Netanyahu não sejam contidos.
O massacre perpetrado pelo governo israelense em Gaza ultrapassa tudo o que se conhece. Não foi uma matança ignorada ou ocultada, mas um assassinato em massa planejado e exposto à vista de todo o mundo.
Ninguém pode argumentar que desconhece essa barbárie e muito menos se eximir da responsabilidade de tolerá-la. Registou-se o maior homicídio coletivo do século XXI, com agressores que não escondem sua pretensão de demolir uma sociedade, para levá-la de volta à Idade da Pedra.
Evidências do horror
O massacre de Gaza deixou para trás tudo o que os palestinos sofreram durante décadas de opressão colonial. Cada item dessa carnificina confirmou seu caráter premeditado. Não houve “excessos” nem “danos colaterais”. Os assassinatos foram rigorosamente calculados e perpetrados com uma frieza indescritível.
Até o momento, foram contabilizados mais de 67.000 mortos e 170.000 feridos, sem contar o número de vítimas não localizadas sob os escombros. O relatório que resume essa atrocidade é assustador (Marcetic, 2025). A taxa de mortalidade diária nas mãos do exército israelense superou as médias de qualquer conflito contemporâneo. Há 6.000 famílias com um único sobrevivente vivo e inúmeros casos de três gerações aniquiladas no mesmo bombardeio. E 6% da população morreu ou sofreu alguma mutilação e os próprios porta-vozes de Israel admitem que 82% dos mortos eram civis.
Gaza tornou-se um cemitério para as crianças. Esse infanticídio foi quase 10 vezes superior ao sofrido na Síria e 45 vezes maior do que no Iêmen. Em média, dez crianças por dia perderam uma ou ambas as pernas em amputações sem anestesia. Foram alvos deliberados dos soldados israelenses, que mataram 2% da população infantil, numa média de uma criança assassinada por hora. Os funcionários da ONU reconhecem que “já não há nascimentos normais em Gaza”.
Durante dois anos, dois milhões de pessoas foram cercadas para privá-las de comida. Tentou-se precipitar sua morte por fome, após a restrição da ajuda humanitária. Os soldados atacaram os socorristas que distribuíam comida e um número incontável de palestinos ficou à beira da inanição. A suspensão de todas as campanhas de vacinação agravou sua vulnerabilidade.
Os desesperados que procuravam comida ficaram presos numa armadilha mortal por tentarem recolher algum alimento. Os assassinos nem sequer apresentaram pretextos e simplesmente dispararam contra os famintos (Haifawi, 2024).
Os bombardeios provocaram, além disso, um “urbicídio” superior ao sofrido pelas cidades mais devastadas durante a Segunda Guerra Mundial. Varsóvia, Dresden, Stalingrado, Hamburgo, Hiroshima ou Coventry não padeceram, nessa guerra, o percentual de destruição que Gaza sofreu. Nesta localidade, 92% das estradas, 60% das moradias, 90% das escolas, 83% das terras agrícolas e 72% da frota pesqueira foram destruídas. As toneladas de explosivos lançadas sobre o enclave equivalem a seis bombardeios de Hiroshima e geraram emissões poluentes numa escala irreversível.
Em Gaza, um cenário apocalíptico irrompeu com a demolição dos hospitais e o assassinato de mais médicos e enfermeiros do que em todos os conflitos da última década. O horror incluiu o enterro dos mortos em grandes valas. Dos 38 centros de saúde que existiam no enclave, 25 ficaram fora de serviço e 13 continuaram funcionando parcialmente em condições extremas. Metade dos medicamentos essenciais esgotou-se e a taxa de ocupação hospitalar ultrapassou os percentuais mais catastróficos. Os bombardeios pulverizaram 103 centros de cuidados primários e 25 instalações de produção de oxigênio.
A ferocidade sionista foi particularmente mortífera para os jornalistas, porque procuraram silenciar a difusão dos massacres. Já se contabilizam mais vítimas entre os repórteres do que nas últimas sete guerras com participação dos Estados Unidos (Hedges, 2024). Não houve consideração por figuras reconhecidas da cultura, do esporte ou do cinema. Museus, centros recreativos e locais sagrados voaram pelos ares.
Israel empreendeu uma corrida acelerada para eliminar o maior número possível de jornalistas, intelectuais e acadêmicos, com o objetivo explícito de destruir a rica cultura da sociedade de Gaza. Tentou consumar um “escolasticídio”, na localidade que há décadas prioriza a educação em todos os níveis da população. (Baroud, 2025).
A crueldade contra os palestinos lembra o castigo sofrido pelos judeus durante o holocausto. A comparação surge imediatamente, diante dos relatos de soldados que atiram por diversão, mirando na cabeça ou no peito das crianças. A mesma associação surge ao observar como os soldados arrastaram suas vítimas para fuzilá-las na frente de suas famílias.
Há inúmeras denúncias do uso de barras de ferro, choques elétricos, cães e queimaduras de cigarros nas torturas aplicadas no centro de detenção Sde Teiman. Os testemunhos dos palestinos libertados dessas prisões são arrepiantes e coincidem na descrição de um nível aterrador de sadismo.
O caráter programado dessas brutalidades foi plenamente corroborado pelo uso da Inteligência Artificial para executar os alvos. O sistema Lavender foi introduzido para organizar o massacre, discriminando as vítimas principais das secundárias ou marginais de cada operação. Funcionou como um modelo de extermínio industrializado, que lembra os campos de concentração do nazismo (Verbitsky 2024). Os contratos que o Google assinou com o governo israelense para consumar essas atrocidades vieram à tona por denúncias feitas pelos funcionários dessa empresa (Veiga, 2024).
Ninguém mais se opõe ao uso do termo genocídio para descrever o que aconteceu em Gaza. É evidente a existência de um plano premeditado de aniquilação da população civil, com o objetivo de consumar uma limpeza étnica. Um número crescente de governos, personalidades e organismos que negavam o uso desse termo já o validam, diante das evidências esmagadoras do horror. O Conselho de Direitos Humanos da ONU destacou que os massacres cometidos por Israel cumprem quatro dos cinco critérios utilizados para definir um genocídio (Breville, 2025).
Justificativas descaradas
O massacre de Gaza repete os extermínios coloniais sofridos pela periferia nos últimos séculos. Em meados do século XX, o nazismo importou essas atrocidades para várias minorias da Europa Ocidental. As matanças sofridas pelos habitantes da Índia, pelos indígenas da América Latina e pelos escravos da África foram estendidas às vítimas do hitlerismo, despertando pela primeira vez uma consciência coletiva dessas tragédias.
Os casos mais recentes da Bósnia e Herzegovina e a aniquilação vista em Ruanda apresentam muitas semelhanças com o atual derramamento de sangue na Palestina (Albanese, 2025). A única diferença está no fato de que a indiferença dos grandes meios de comunicação diante do que aconteceu na África tornou-se tolerância ou justificação do que faz Israel (Majfud, 2025).
Essa absolvição utiliza a invocação repetida e desgastada do holocausto para inverter a realidade, apresentando os palestinos como agressores e os sionistas como vítimas. Nessa falsidade assenta a manipulação da matança hitlerista para validar o horror atual.
Com o argumento de prevenir outro holocausto contra os judeus, justifica-se o assassinato em massa dos palestinos. Eles sofrem o genocídio, que foi concebido e consagrado internacionalmente em 1948, a partir dos assassinatos perpetrados pelo nazismo.
Os sionistas não apresentam qualquer indício de uma ameaça atual contra as minorias judaicas no mundo. Limitam-se apenas a relembrar os terríveis episódios de antissemitismo do passado. Supõem que, para prevenir esse eventual ressurgimento, é preciso dar rédea solta à carnificina de outro povo. Omitem que os palestinos são historicamente alheios aos sofrimentos padecidos pelos judeus e que não há qualquer razão para descarregar sobre eles uma vingança (Traverso, 2024).
Israel usa o terrorismo de Estado para destruir as condições de vida dos palestinos. Conta com a cumplicidade dos grandes meios de comunicação, que denunciam as vítimas pelas atrocidades que cometem os agressores. Essa inversão da realidade é verificada no uso do termo “terroristas” para qualificar a resistência e não os causadores do genocídio.
Os desesperados e heróicos palestinos – que enfrentam como podem a maior máquina bélica da região – são apontados como culpados da tragédia gerada por seus opressores. Para massificar essa impostura, os combatentes são demonizados com um estereótipo desumanizado de “terrorista islâmico” (Martinelli, 2025: 27-30).
O castigo da fome foi introduzido com o propósito deliberado de quebrar a resistência dos palestinos. A descrição de seus efeitos sobre dois milhões de habitantes de Gaza é arrepiante. A falta de comida enfraquece o corpo, afrouxa a linguagem, apaga a clareza, anula o pensamento e gera um tremor que impede a sobrevivência (Alqaisi, 2025).
O terrorismo de Estado também pode ser verificado na desproporcionalidade das vítimas. Por cada israelense morto, foram assassinados 60 palestinos. Essa assimetria confirma a presença de uma matança e não de uma guerra, no contexto de uma ocupação brutal e não de um conflito vago. Como não há combates, mas apenas bombardeios, quinze em cada dezesseis mortos são civis (Peral, 2025).
A dinâmica criminosa é igualmente visível nos assassinatos de líderes palestinos e altos funcionários de governos que apoiam sua luta. Israel naturalizou essa prática de eliminar adversários em qualquer lugar do planeta. Apresenta o homicídio das figuras mais marcantes dessa escalada (Nasrallah, do Hezbollah, Haniyeh e Saleh al-Arouri, do Hamas, ou Qasem Solimani, da Guarda Revolucionária do Irã) como uma forma habitual de ação político-militar.
O alto comando israelense orgulha-se desses crimes e ostenta em voz alta que pode efetivá-los em qualquer país por meio de seus espiões e infiltrados. Com esse recurso mafioso, internacionaliza a guerra para todos os cantos do planeta (Hearst, 2024a).
Mas o mais chocante é a apresentação desses crimes como atos de proteção. Israel proclama seu direito de defender-se, quando é um agressor descarado. O princípio que alega é um atributo que, na realidade, corresponde aos palestinos – ou a países como o Irã – que foram atacados impunemente pela aviação sionista.
O pretexto apresentado é a neutralização da ameaça que representaria a posse de armas atômicas por parte de Teerã. Mas se omite que tal perigo potencial é contraposto pelo arsenal do agressor. Israel dispõe de um número suficiente de bombas para reduzir o Oriente Médio a cinzas. Enquanto o Irã dispara seus mísseis contra bases militares, seu inimigo mata crianças famintas e indefesas.
Há décadas Israel ignora todas as resoluções das Nações Unidas que questionam sua ocupação de territórios alheios. Mas em suas últimas agressões, enterrou completamente qualquer princípio de legalidade internacional. Pratica um belicismo descontrolado, que viola todos os acordos e Cartas das Nações Unidas.
O governo israelense aplica uma versão aumentada da “guerra preventiva”, que George W. Bush introduziu para invadir o Iraque com a patranha das “armas de destruição em massa”. Benjamin Netanyahu expõe pretextos mais improváveis para bombardear seus vizinhos. A denúncia do desastre humanitário que está provocando é o ponto de partida para uma avaliação da catástrofe atual. Seja qual for o desfecho, o resto do mundo não esquecerá nem perdoará os crimes que está cometendo.
Adversidades e fracassos
Após dois anos de massacres, Benjamin Netanyahu não consegue lidar com o lamaçal em Gaza. Atolou-se no primeiro ataque e aceitou negociar a troca de reféns por prisioneiros de ambos os lados. Mas, ao perceber essas negociações como uma derrota, redobrou a ofensiva e iniciou um genocídio por fome da população encurralada.
O que não conseguiu com violência, tentou obter com mais violência. Mas, ao não conseguir a rendição da resistência, lançou outro ataque para reforçar o assédio aos sobreviventes exaustos (Malm, 2025). Apostou no esgotamento de uma população civil desesperada por um pedaço de pão ou um gole de água (Rahman, 2005).
Com sua escalada diária de assassinatos coletivos, Benjamin Netanyahu pretende levar os palestinos a implorar por suas vidas. Ele supõe que, com mais fome e derramamento de sangue, eles acabarão pedindo aos gritos por alguma saída do inferno, para mergulhar em outra Nakba. Os ministros do governo israelense proclamam abertamente sua intenção de repetir a expulsão em massa de 1948 e os mais descontrolados convocaram a matar homens, destruir casas e incendiar instalações (Pappe, 2023).
Mas enfrentam uma resistência que ficará na história como um marco de heroísmo pela ação dos combatentes, que substituem os caídos para continuar a batalha.
A primeira recepção aos combatentes em janeiro passado, quando um acordo parecia ser alcançado, ilustrou esse espírito de luta. O Hamas resiste com uma coragem admirável às enormes pressões para que se renda (Ghanem, 2025) e mantém praticamente sem recursos todo tipo de operações, para desgastar a mortífera maquinaria de Israel (Scahill, 2025).
Benjamin Netanyahu acabou aceitando o acordo que rejeitava, para trocar os 20 reféns vivos que permaneciam nas mãos do Hamas por 2.000 prisioneiros palestinos. Esse acordo foi celebrado em Gaza como uma importante vitória, porque forçou a troca que o governo israelense se recusava a concretizar (Sanz, 2025).
O maior criminoso do século XXI apostou em continuar o genocídio, para recuperar os reféns sem qualquer tipo de transação. Ele manteve essa opção repetidamente, até que finalmente teve que assumir seu fracasso. Não conseguiu destruir o dispositivo de proteção dos prisioneiros montado pelo Hamas e teve que arquivar seus planos de resgate (Seurat, 2025).
A resistência manteve sua capacidade de lançar foguetes sob os escombros e, assim que o armistício foi assinado, conseguiram recuperar rapidamente o controle da localidade (Atwan, 2025). Essa vitória refutou as previsões que anunciavam um triunfo israelense coroado com o desarmamento do Hamas. As negociações que tentaram concretizar esse ultimato terminaram, na prática, com um recuo de Benjamin Netanyahu (Aznares, 2025).
Esse desfecho foi confirmado pela rápida recuperação do Hamas das zonas sem tropas sionistas. Também verificou-se o desmantelamento de grupos mafiosos a serviço dos ocupantes. Este balanço é compartilhado por todas as organizações palestinas e especialmente pelas vertentes de esquerda desse conglomerado (Resumen LA, 2025). Os habitantes de Gaza demonstraram que o sumud coletivo (perseverança na luta) pode impor um retrocesso a um exército que se considera imbatível.
O fantasma do que aconteceu em 2005 – quando, após vinte anos de ocupação, Sharon forçou o desmantelamento dos assentamentos de Gaza – volta a pairar sobre a política israelense. Naquele momento, o elevado custo político, humano e econômico da presença sionista na Faixa precipitou a retirada. Envolvia gastos volumosos com proteção, que retiravam fundos do projeto de ampliação dos assentamentos na Cisjordânia.
Benjamin Netanyahu está longe de repetir esse abandono por enquanto, mas seu propósito de ocupar a Faixa está sendo reconsiderado. Ele sofreu uma derrota política que o obriga a rever seu curso de ação.
Nessa reavaliação, pesa a opinião de vários generais que se opõem à tentativa de conquistar Gaza. Eles estimam que essa operação levaria de 3 a 5 anos, não conseguiria erradicar o Hamas e obrigaria Israel a administrar uma localidade com dois milhões de inimigos permanentes (Kupervaser, 2025).
Mas Benjamin Netanyahu perdeu o rumo e empurra Israel a agir como um prussiano desorientado, que esbanja arrogância, sem saber para onde vai seu militarismo cego.
Reavaliação em vários campos
O plano inicial de Netanyahu ficou no limbo. Ele pretendia consumar uma rápida limpeza étnica, para empurrar os habitantes de Gaza para um gigantesco curral na fronteira com o Egito. Com esse confinamento, esperava forçar seu vizinho a acolher em massa os refugiados. Ele pretendia depositar nesse país um milhão de pessoas e distribuir a outra metade restante entre Turquia, Iraque e Iêmen.
Como não conseguiu essa expatriação na região, continua tentando alguma Nakba africana, com transferências massivas de palestinos para o Congo, Somália ou outros cantos do continente negro.
O projeto sionista prioriza o confisco das terras, do gás e da água de Gaza. São os três elementos que Israel expropria permanentemente. Aos habitantes de Gaza cabia 1,4 bilhão de pés cúbicos de gás por cerca de 4 bilhões de dólares, que Tel Aviv já capturou e exporta para o Egito e a Jordânia (Armanian, 2025).
Seguindo essa mesma direção, Netanyahu aposta em ocupar parcialmente uma zona da Faixa separada do resto por uma “linha amarela”. Ele apresenta esse controle como algo transitório, mas convém lembrar que, em 1949, os mapas israelenses traçaram uma “Linha Verde” também momentânea, que se tornou duradoura com o simples passar do tempo (Rodríguez, 2025).
A nova tentativa de ocupação volta a suscitar a mesma oposição da elite militar, que se opôs ao primeiro plano de conquista da Faixa. Os críticos estimam que a divisão de Gaza em duas partes resultará num cenário incontrolável, porque incentivará uma resistência guerrilheira muito difícil de derrotar. O número de reservistas israelenses obrigados a patrulhar a zona excederia a capacidade do exército (Shebel, 2025) e, mais cedo ou mais tarde, os milicianos palestinos voltariam a desestabilizar os ocupantes (Hearst, 2024b).
Enquanto Benjamin Netanyahu discute com sua cúpula militar, Donald Trump tomou a iniciativa de impor um cessar-fogo, que apresentou com toda a pompa como um “Plano de Paz”. Sua encenação foi consagrada numa cerimônia estrondosa no Sinai, com a presença pontual de seus parceiros europeus e árabes. Ninguém esconde o caráter colonial desse projeto, que concederia a gestão de Gaza a uma Autoridade Transitória Internacional sem a participação dos palestinos.
A Faixa seria governada pelo próprio Donald Trump e Tony Blair, com a segurança nas mãos de Israel e o auxílio de tropas dos países árabes. Alguns tecnocratas de origem palestina – selecionados e domesticados pelo poder norte-americano – contribuiriam com o acompanhamento decorativo para a farsa. O plano ignora qualquer ingrediente de democracia, ao excluir completamente a opinião dos habitantes de Gaza sobre esse governo (Marco del Pont, 2025).
O projeto é uma versão enfraquecida do “acordo do século” redigido há cinco anos por um familiar de Donald Trump (Kushner). Agora, nem sequer se menciona qualquer tipo de criação futura, imaginária ou suposta do Estado palestino. Simplesmente, descarta-se essa possibilidade, retomando o modelo dos mandatos coloniais que, ao final da Primeira Guerra Mundial, redesenharam os países tutelados pelas grandes potências.
A administração internacional da OTAN no Kosovo é a versão atualizada do esquema, que agora se busca estender a Gaza (Achcar, 2025). A Israel é atribuída a mesma custódia “temporária” que tem exercido na Cisjordânia há 58 anos, com atribuições para anexar as porções que lhe pareçam atrativas.
O plano consagra o genocídio, para iniciar os projetos econômicos de remodelação capitalista de Gaza, que Donald Trump e Benjamin Netanyahu enunciaram várias vezes. O mais horrível é a construção de um balneário sobre as cinzas de seus habitantes. Concebe-se essa “Riviera do Oriente Médio”, em eventual coexistência com algumas colônias judaicas.
A reestruturação de Gaza está posta há muito tempo, porque a Faixa é uma passagem inevitável para a construção do Canal Ben Gurion, que ligaria o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho, em concorrência com o Canal de Suez. Esse canal permitiria um tráfego que duplicaria o atual e serviria para montar um corredor comercial entre a Europa, o Oriente Médio e a Índia.
Como Gaza encontra-se no meio desse traçado, é indispensável “pacificá-la” massacrando seus habitantes (Marcó del Pont, 2023). Os Estados Unidos são os grandes promotores desse empreendimento, que rivalizaria com a bem-sucedida ligação de portos que a China forjou na mesma região através da Rota da Seda.
Os governos da França, Alemanha e Inglaterra – que se distanciaram dos massacres de Benjamin Netanyahu exigindo alguma negociação – agora pretendem agarrar-se ao novo empreendimento para obter alguma fatia do negócio.
Mas o compromisso da Arábia Saudita – que é a chave mestra da iniciativa – ainda está por ser visto. Ela deveria liderar o financiamento do plano e garantir o apoio político dos governos árabes. Esse rumo pressupõe, antes de tudo, o estabelecimento de relações diplomáticas do reino wahabita com Israel.
O líder saudita Ben Salman deu vários passos para se aproximar de Tel Aviv e fortaleceu a relação com Donald Trump, assinando os acordos exigidos pelo magnata. Mas o monarca continua jogando nos dois lados. Ele mantém o flerte com a China, assina pactos de conciliação com o Irã e negocia acordos de defesa com o Paquistão.
Essa ambivalência inclui a eventual entrada no BRICS e um aceno ao Egito, que se opõe ao projeto Ben Gurion devido à perda do monopólio sobre o transporte marítimo, que mantém através do Canal de Suez. A indefinição da Arábia Saudita persiste, além disso, como o grande obstáculo para a criação da força de 10.000 soldados egípcios e jordanianos, que exige a efetivação do plano colonial.
A crise gerada pela hecatombe de Gaza tem muitos desfechos possíveis e as saídas projetadas mudam num ritmo vertiginoso. A avaliação dessas conjunturas tende a confundir muitos analistas, que evitam caracterizar o pano de fundo do conflito, que é a natureza do sionismo.
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Referências:
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-Haifawi, Yoav (2024). La «masacre de la harina» es la antesala de lo que Israel prepara para «el día después» en Gaza 07/03/2024 https://rebelion.org/la-masacre-de-la-harina-es-la-antesala-de-lo-que-israel-prepara-para-el-dia-despues-en-gaza/
-Hedges, Chris (2024) exterminio funciona, al principio 21/10, https://rebelion.org/el-exterminio-funciona-al-principio/
-Horacio Verbitsky (2024). Resumen Medio Oriente, 22 de abril de 2024
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–Veiga, Gustavo (2024) Israel, Google y el uso de la inteligencia artificial en Gaza, https://www.pagina12.com.ar/730856-israel-google-y-el-uso-de-la-inteligencia-artificial-en-gaza
–Albanese, Francesca (2025) Hambre y especulación en Gaza https://www.other-news.info/noticias/hambre-y-especulacion-en-gaza-entrevista-con-francesca-albanese/ 27-6
–Majfud, Jorge (2025). ¿Por qué el genocidio de Gaza es igual y es diferente a tantos otros? 14/07/2025 https://rebelion.org/por-que-el-genocidio-de-gaza-es-igual-y-es-diferente-a-tantos-otros
–Traverso, Enzo. (2024). Enzo Traverso y Martín Martinelli presentan el libro “Gaza ante la Historia” https://huelladelsur.ar/2024/08/26/enzo-traverso-y-martin-martinelli-presentan-el-libro-gaza-ante-la-historia/
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–Kupervaser, Daniel (2025) “Hamas y Netanyahu eternizarán el conflicto” https://www.pagina12.com.ar/857521-hamas-y-netanyahu-eternizaran-el-conflicto
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-Marco del Pont, Alejandro (2025) ¿Salvación para Gaza o neocolonialismo encubierto? https://rebelion.org/salvacion-para-gaza-o-neocolonialismo-encubierto/
-Achcar, Gilbert (2025). El “acuerdo del milenio” tras el “acuerdo del siglo” https://vientosur.info/el-acuerdo-del-milenio-tras-el-acuerdo-del-siglo
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[Artigo tirado do sitio web aterraéredonda, do 13 de novembro de 2025]

